20.8.05

Ainda cinema

Documentário e ficção revelam mais esta página negra na história da ONU
filme
Cena de "Hotel Ruanda": uma síntese da cronologia do massacre da minoria tútsi

Cena verídica – Ruanda (1994): o massacre de um milhão de tutsis que o mundo deu às costas, agora na telona para todo olho ver. O que acontece com os seres humanos quando tragédias como essas acontecem? Por que só passam a interessar quando vão para as telas de cinemas? É um mundo De Ponta Cabeça.

O que aconteceu em Ruanda foi um desses genocídios postos debaixo do tapete vermelho do mundo. Podemos citar outros, em meia década somente: Srebrenica, na ex-Iugoslávia, (1995). Timor Leste (1999), imersos na aldeia midiática global, de CNN, internet etc.

Aos poucos, porém, as trágicas histórias vão sendo recuperadas. Na vanguarda, mais uma vez, os documentários. Sobre Srebrenica, cujo décimo aniversário foi lembrado no mês passado, basta assistir a "Um Grito do Túmulo" (A Cry from the Grave), rodado para a BBC por Leslie Woodhead.

É chegada a vez do massacre dos tútsis em três meses por seus conterrâneos hútus em Ruanda, no centro da África. Nem é preciso esperar chegar ao Brasil o documentário francês "Tuez-les Tous! - Histoire d'un Génocide "sans Importance" (Mate-os Todos! - História de um Genocídio "sem Importância"), que premiou em janeiro passado, no Fipa, os diretores Raphaël Glucksmann, David Hazan e Pierre Mézerette. Nada o supera em didatismo e contundência, mas excelentes introduções ao extermínio ruandense podem ser encontradas na livraria mais próxima, em "Uma Temporada de Facões", de Jean Hatzfeld (Companhia das Letras) ou no cinema ali perto, com "Hotel Ruanda", de Terry George.

Baseado num engenhoso roteiro indicado ao Oscar de Keir Pearson e do próprio diretor, "Hotel Ruanda" sintetiza a cronologia do genocídio com força e pathos, a partir da história real de uma espécie de Oscar Schindler de Ruanda, Paul Rusesabagina, um gerente de hotel hútu que salvou mais de mil pessoas, em sua maioria tútsis. O filme lembra como, sob o mandato colonial da Bélgica, Ruanda viu-se artificialmente dividida entre duas "etnias", a minoritária dos tútsis e a predominante dos hútus, assim definidos até nas carteiras de identidade. Os primeiros foram eleitos pelos belgas para auxiliá-los na gestão do país. A independência em 1962 apenas agravou a polarização.

Documentário e ficção revelam mais esta página negra na história da ONU. Atemorizado pela perda de soldados em ação similar na Somália, o Conselho de Segurança tergiversou, negou a dimensão da tragédia e, num paroxismo de covardia, ordenou a retirada da tropa, deixando Dallaime com apenas 300 homens. O secretário-geral à época , Boutros Boutros Ghali, tenta pateticamente justificar o injustificável em entrevista ao documentário.

Há que ter estômago forte para assistir à detalhada reconstituição da matança. Numa seqüência, os refugiados tútsis abrigados num hospital em Murambi. Novas imagens exibem o mesmo local, dias depois, atapetado de cadáveres. Outro refúgio, nas colinas de Nyamata, é o palco do meticuloso livro de Jean Hatzfeld. Em 2000, ele já havia dado voz aos sobreviventes, em "Dans le Nu de la vie - Récits dês Marais Rwandais" (O Nu da Vida - Relatos dos Pântanos Ruandeses). "Uma Temporada de Facões" ouve agora os assassinos, não soldados, mas hútus comuns. Seus depoimentos relembram o transe que os levou a executar a pedra, a pau e a facão vizinhos, colegas de bar e companheiros de trabalho.

Ambos filmes deixam claro a omissão dos EUA de Clinton, mas a ficção minimiza o novo colaboracionismo da França de Mitterrand, devassado pelo documentário francês. Os franceses armaram e treinaram o exército hútu mesmo quando já iniciado o genocídio, fazendo mesmo vistas grossas aqui e ali à sanha da milícia. Tudo, em nome de interesses geopolíticos na região.
"Esforçar-se para entender o que aconteceu em Ruanda é uma tarefa dolorosa, da qual não temos o direito de nos esquivar - faz parte de ser um adulto moral", sustenta Susan Sontag na concisa e certeira apresentação ao livro de Hatzfeld. Com o relato dele, o drama de George e o documentário de Glucksmann, Hazan e Mezerette, caro leitor, você não tem mais desculpas. Ninguém tem.

Fonte: Valor Econômico

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